José Cardoso Pires – O Delfim




Incidirei o estudo do tempo da diegese e do tempo do discurso narrativo tendo como base o romance de José Cardoso Pires, O Delfim.
Veja-se o narrador/escritor (homodiegético), do romance de José Cardoso Pires, O Delfim, que logo no início da narrativa invade o espaço desta como sujeito presente evocando o tempo passado na companhia do engenheiro Palma Bravo:
        «Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à
                     aldeia  e onde, …, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.»
Oferece-nos, assim, a presença de vários tempos: o tempo da diegese/acção que supõe a ordem natural dos factos que será a ida do narrador à Gafeira no Outono anterior, e a chegada à Gafeira no Outono seguinte, a sequência do desvendar da tragédia ocorrida. Sendo o tempo da diegese de «onze meses»; o tempo do discurso narrativo[1] concretizado, por vezes, com recurso a analepses e prolepses e o tempo do discurso do seu personagem:
                     «…Devo ter passado pelo sono, …, Serão, quê, quatro horas?» (1999: 215).
                   «…só me demorei demasiado com coisas à margem, …, com tudo isto o nosso homem já
                    está ao  volante do carro» (Ibid:43).
No trecho precedente denotamos que o narrador, agora, na “pele” do personagem da acção “perde” os poderes de controlar o tempo, como se o narrador por entre duas vírgulas se ausentasse, aspirando a “liberdade” de poder ser um personagem como outros personagens da trama – No entanto, ao tomar a liberdade de ser um personagem comum sujeito ao fatum – utiliza o seu poder manipulador no tempo apressando-o em relação a ele próprio/personagem.

Dando continuidade, aditemos o tempo psicológico do seu «eu» de ontem que poderá não ser o seu «eu» de hoje; os tempos dos outros personagens dentro da trama, o tempo histórico (época de censura), entre outros. Observe-se que sendo o narrador o protagonista da narração o tempo da diegese que neste pequeno trecho de Cardoso corresponde a uns «onze meses» – só o é porque a elaboração do discurso narrativo efectuado pelo narrador assim o determinou. Significando que a diegese está ancorada ao discurso - só por meio do discurso é que o leitor chega à diegese.
 Ao contar a experiência vivenciada, o escritor, na história contada, deixa de ser um dos personagens para passar a ser o narrador, afasta-se do facto sucedido, tanto no tempo como no espaço, sendo que, neste caso, o narrador ao visitar a aldeia da Gafeira retorna ao espaço, mas não reconquista o tempo, transformando-se em narrador/ personagem: 
          «…desvio o olhar do café onde deixei o Velho e o Batedor. Volto-me antes para o largo e, sem querer,
           torno à manhã do ano passado em que assisti a aparição do casal Palma  Bravo.»
O mesmo - assim o confirma quando refere que:

  «… na véspera do Dia de Todos os Santos e de todos os caçadores, o primeiro do mês de  Novembro
  de mil  novecentos e sessenta e seis […]. E, enfim, não se pode dizer que seja uma maneira muito
  própria de saudar um conhecido, um hóspede, como é o caso, que regressa à aldeia ao cabo
  de uma ausência de 365 dias. É verdade, …, 31 de Outubro de 1967.» (Ibid.39)

O narrador oferece o discurso com grandes momentos de indecisão, e interrogação apelando ao leitor a sua intervenção no processo de completude do sentido da obra (obra Aberta), induzindo o leitor que o romance é do género policial:

                        «…Se tivesse havido crime, […] quem é que alguma vez sonharia poder ficar com a lagoa? …, o abraço de
 morte com que recebeu Maria das mercês na madrugada de 12 de Maio próximo, …, quem leu os autos? […]      que terá sido feito do engenheiro? Fugiu à morte da mulher? (ibid.50:69:97:105).

No desvelar do discurso deparamo-nos com uma proposta de uma diegese futura:

                        «…O Tomás Manuel só esperava que o livro saísse para apresentar queixa aos tribunais.” (OD, 119)

Ou seja, o personagem Tomás Manuel iria mover um processo ao escritor-narrador. Mas, então questiona-se: -  não é o escritor-narrador o manipulador do discurso?
– Assim sendo, o protagonista cria um segundo narrador e uma nova diegese e cede a sua posição de narrador passando a ser um personagem. No conceito de Genette o narrador passaria a ser extradiegético.
Será possível apelidarmos de extradiegético? – Quando o narrador se “encontra” no interior da nova diegese?

Creio que se terá de rever os conceitos, para assim não nos enredarmos numa pesquisa como os crimes da Gafeira – de desfecho indefinido pela falta de dados que o narrador nunca pretendeu dar!


Bibliografia

BELLO, Maria do Rosário Lupi, Narrativa Literária e Narrativa Fílmica. O caso de "Amor de Perdição". Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008 (1ª ed 2005).
DIJK, Teun A. Van. Discurso, Notícias e Ideologia, Estudo na Análise Crítica do Discurso. Porto. Editores, S.A.,2005.

PAZ, Olegário e MONIZ, António. (2ª ed.) Dicionário Breve de Termos Literários. Lisboa. Editorial Presença, 1997.

PIRES, José Cardoso Pires. (17ª ed.) O Delfim. Lisboa. Publicações D. Quixote,1999.

REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina Macário. (4ª. ed.). Dicionário de Narratologia.
 Coimbra. Livraria Almedina, 1994.

REIS, Carlos. (2ª ed.) O conhecimento da Literatura. Coimbra. Edições Almedina S.A.2008.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e Silva. Teoria da Literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 1990.





[1] O tempo cronológico. Tendo consciência do tempo do discurso da leitura pelo espaço textual proferido por Jaap Lintvelt, e reformulado por G. Genette «… a recitação é variável segundo as ocorrências.» - já em tempo cronológico. (J.L:1989:52) ^(G.G:1983:22)

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